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Mudança nas regras


No dia 14 de dezembro, a Comissão Federal das Comunicações dos Estados Unidos (FCC, sigla em inglês) decidiu pelo fim da neutralidade da rede. Com votação apertada – com três votos a favor (todos do Partido Republicano, do presidente Donald Trump) e dois contra (ambos do Democrata) - a decisão foi acompanhada de muito temor e também de protestos, em vários países, incluindo o Brasil.

Personalidades como o cofundador da Apple, Steve Wozniak, o pioneiro da rede Vint Cerf e o inventor da World Wide Web e professor do MIT, Tim Berners-Lee, enviaram uma carta aberta aos senadores e representantes do comitê de Comunicações, Tecnologia, Inovações e Internet no Senado dos Estados Unidos, pedindo o cancelamento da votação para as novas regras de Internet, dias antes da votação.
 

“A tendência é que os serviços piorem para os consumidores, e os distribuidores de conteúdo vão perder em performance”
André Miceli, professor e coordenador do MBA em Marketing Digital da FGV


Na carta, assinada por 200 engenheiros e pioneiros da Internet, os argumentos utilizados foram submetidos à consulta pública realizada em julho, e contou com a participação de mais de 20 milhões de pessoas opostas à decisão, e falavam sobre a natureza aberta da Internet e o fim da interconexão com provedores de acesso de última milha, sem colocar algum mecanismo em substituição para proteger consumidores, mercado livre e inovação online.

Mesmo assim, as operadoras de telecomunicações americanas optaram por defender a liberdade na oferta de modelos de negócio, com a possibilidade de diferenciar os tipos de serviços de Internet oferecidos aos usuários em função da qualidade, quantidade e do tipo de conteúdo trafegado, dentro das limitações impostas pela lei.

Na prática, isso significa que as regras da Open Internet, instauradas no governo Obama, incluindo a classificação da banda larga como serviço essencial na Title II e a Open Internet, serão revertidas. Entre as mudanças estão a classificação da banda larga de “serviço essencial” na Title II para “serviço de informação” na Title I, da Communications Act, a Lei de Comunicações dos Estados Unidos, e a exigência para que provedores de Internet (ISPs) passem informações sobre suas práticas aos consumidores, “incluindo bloqueio, estrangulamento, priorização paga ou priorização afiliada”.

Para o professor e coordenador do MBA em Marketing Digital da FGV, André Miceli, a decisão da FCC de deixar de classificar a internet banda larga como serviço de utilidade pública no país é um “desequilíbrio sistêmico”. De acordo com ele, o resultado pode ser péssimo para o ambiente digital porque recentemente, pela primeira vez nos últimos anos, houve um desaquecimento nos investimentos de infraestrutura de acesso à internet.

“Nesse formato, teremos menos concorrência e menos possibilidade de evolução. A tendência é que os serviços piorem para os consumidores, e os distribuidores de conteúdo vão perder em performance”, ressalta André Miceli. O professor da FGV explica que, com os servidores de internet ainda considerados de utilidade pública, não podia acontecer priorização desses pacotes.
 

“O objetivo das regras de neutralidade é proteger a liberdade de expressão, bem como a capacidade de inovar livremente e a privacidade dos usuários”
Luca Belli, pesquisador sênior do Centro de Tecnologia de Sociedade da FGV Direito Rio, autor do Net Neutrality Compendium e especialista de neutralidade da rede pelo Conselho da Europa


“Agora vai poder. Isso significa que, se você enviar dados no mesmo momento ou em uma rede que está lotada e tiver concorrendo com a Netflix, por exemplo, esta terá prioridade sobre o seu pacote porque ela deve ter um acordo diferenciado com esses provedores”, relata o especialista.

André Miceli aponta, ainda, que nesse novo formato teremos menos concorrência e menos possibilidade de evolução. "A tendência é que os serviços piorem para os consumidores, e os distribuidores de conteúdo vão perder em performance", analisa e completa: "Isso pode ser um tiro no pé dos próprios desenvolvedores de conteúdo. É um desequilíbrio sistêmico bastante significativo."

E agora?
Pesquisador sênior do Centro de Tecnologia de Sociedade da FGV Direito Rio e autor do Net Neutrality Compendium, Luca Belli, que também foi especialista de neutralidade da rede pelo Conselho da Europa, diz que a neutralidade da rede é um princípio de não-discriminação segundo o qual as operadoras não podem bloquear ou degradar os aplicativos que competem com os parceiros comerciais das operadoras e, igualmente, não podem priorizar os próprios parceiros, por exemplo, melhorando a qualidade de quem pagar mais.

“Desde o final dos anos 90, muitos acadêmicos começaram a avaliar que os provedores de acesso à Internet tinham a possibilidade de atuar como controladores das redes, graças à capacidade técnica de bloquear, filtrar e priorizar conteúdos e aplicativos. Cabe destacar que a capacidade de gerenciar tecnicamente o tráfego na Internet não é algo negativo em si mesmo. Todavia, o problema é o abuso desse poder que pode levar ao bloqueio ou degradação de serviços lícitos por razões meramente comerciais”, alerta o especialista.

Luca Belli explica que as regras de proteção de neutralidade da rede surgiram, justamente, para evitar comportamentos abusivos, estimulados pelo fenômeno da integração vertical. “Ou seja, a aquisição de provedores de conteúdo e aplicativos pelas operadoras”, esclarece. De acordo com Belli, as operadoras verticalmente integradas têm um incentivo considerável a priorizar seus parceiros e degradar ou bloquear os competidores e, nos EUA, esse fenômeno é ainda mais acentuado. Como exemplos, ele cita a compra da NBC Universal pela Comcast há alguns anos atrás; a aquisição da AOL e a Yahoo pela Verizon; e a AT&T a Time Warner.

O pesquisador é enfático ao dizer que qualquer tipo de aplicativo utilizado cotidianamente foi desenvolvido e compartilhado livremente para o desenvolvedor, sem necessidade de ter um acordo prévio com as operadoras. Como o Facebook e o Google, por exemplo, que foram desenvolvidos para estudantes universitários, que não precisaram fechar parcerias com operadoras.

“Ao contrário, quando as operadoras podem controlar sem limite o tráfego de rede, é possível que elas decidam bloquear e degradar seus concorrentes, como aconteceu em vários casos nos EUA, documentados e sancionados pela FCC nos anos que precederam as regras de neutralidade” conta Belli. “Comportamentos abusivos foram levantados também em outras partes do mundo, como no Chile e na União Europeia, onde a neutralidade da rede é explicitamente protegida por marcos regulatórios”, aponta.

Como fica o Brasil?
Luca Belli nos lembra que, no Brasil, a neutralidade da rede é protegida pelo Marco Civil da Internet e pelo Decreto 8771/2016. O usuário brasileiro, portanto, permanece protegido para um arcabouço regulatório sólido. Todavia, a supressão da proteção da neutralidade pela FCC é susceptível de determinar consequências diretas e indiretas para os usuários brasileiros. “Em primeiro lugar, as operadoras brasileiras poderão argumentar que o exemplo americano deveria ser seguido e, com certeza, pedirão uma modificação do Marco Civil. A decisão da FCC fornece um precedente”, alerta o especialista.

Porém, para Belli, o argumento do exemplo americano não parece particularmente convincente. Isso porque a administração Trump decidiu também sair unilateralmente dos acordos de Paris sobre proteção do ambiente, para proteger os interesses de grandes grupos produtores de combustíveis fósseis, mas não foi seguida por muitos outros países. No entanto, a decisão da FCC pode ter outros tipos de consequências, mais diretas, para os usuários brasileiros, pois a FCC deixou as operadoras livres para gerenciar as próprias redes sem limites e, paralelamente, eliminou as obrigações de privacidade.
 

“É esperado que as empresas passem a transmitir os seus conteúdos a partir de infraestruturas instaladas no Brasil e que os brasileiros não fiquem sujeitos a este tipo de medida ocorrida nos Estados Unidos”
Marco Ribeiro, sócio-diretor da área de cibersegurança na consultoria global Protiviti e professor de segurança da informação na FIA


“As operadoras poderão filtrar livremente todo o tráfego que transita nas redes delas, desde que os provedores divulguem os dados que eles coletam e vendem para anunciantes ou corretores de dados”, informa Belli, que afirma ainda: “Parece evidente que, desde que as operadoras tenham a possibilidade de analisar livremente o conteúdo do tráfego na Internet, elas não analisarão somente o conteúdo dos usuários americanos, mas analisarão igualmente as comunicações de qualquer usuário não-americano, inclusive de usuários brasileiros, que se comuniquem com usuários norte-americanos e acessem serviços, cujo trânsito é veiculado pelas operadoras norte-americanas”, conclui.

“Apesar da neutralidade ser garantida no Brasil, grande parte do conteúdo que consumimos na internet vem de empresas americanas, pois nós acessamos via cabo e outras conexões as redes que estão nos Estados Unidos. De alguma forma, esperamos um impacto no uso local, visto que todo esse conteúdo depende, realmente, de uma transmissão americana”, explica Marco Ribeiro, sócio-diretor da área de cibersegurança na consultoria global Protiviti e professor de segurança da informação na FIA.

Para ele, uma medida que reduziria o impacto seria a adoção, por parte dos grandes provedores de acesso e conteúdo, de infraestruturas de redes instaladas no Brasil, o que se tornaria parte do plano para se adequarem ao Marco Civil da Internet. “O que é esperado é que essas empresas passem a transmitir os seus conteúdos a partir de infraestruturas instaladas no Brasil e que os brasileiros não fiquem sujeitos a este tipo de medida ocorrida nos Estados Unidos”, prevê o professor de SI. 

Posicionamento
O presidente da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (Câmara-e.net), Leonardo Palhares, afirma que a extinção da neutralidade de rede é um retrocesso para a sociedade e para a economia digital norte-americana, que poderá, sobretudo, limitar o desenvolvimento livre e democrático da internet, uma vez que possibilita às empresas de serviço de TV a cabo e internet, por exemplo, dar tratamento preferencial para alguns servidores e cobrar mais para que consumidores acessem conteúdos específicos ou até mesmo restringi-los.
 

“A neutralidade de rede é fundamental para o desenvolvimento da Economia Digital, pois assegura uma internet livre e sem discriminação, beneficiando usuários e a inovação via startups”
Leonardo Palhares, presidente da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico (Câmara-e.net)


“A neutralidade de rede é fundamental para o desenvolvimento da Economia Digital, pois assegura uma internet livre e sem discriminação, beneficiando usuários e a inovação via startups. Toda iniciativa que vise privilegiar a poucos em detrimento da liberdade da internet deveria ser repudiada”, declara Palhares. Contudo, o presidente da Câmara-e.net tranquiliza os brasileiros quanto ao momento atual. “Vale ressaltar que, neste contexto, o Brasil fez melhor. A neutralidade de rede foi declarada, desde 2014, pelo Marco Civil da Internet como um direito dos cidadãos brasileiros". 

Neutralidade de rede - posicionamento Câmara-e.net
“Em Decisão polêmica, a Comissão Federal de Comunicações (FCC) votou nessa quinta-feira (14) pela revogação da neutralidade de rede na internet, nos Estados Unidos. Esse é mais um exemplo da polêmica administração do presidente Trump, que tem sido alvo de diversos questionamentos por importantes camadas da sociedade americana. A mudança nas regras de neutralidade possibilitará, aos provedores de Internet, a discriminação de conteúdos que trafegam em suas conexões e da qualidade dos serviços de acordo com o valor cobrado. Contrárias à neutralidade, as empresas de telecomunicações justificam que não cabe ao governo estabelecer um ‘gerenciamento’ da internet.” Leia a revista

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